21 maio 2013

Os livros como paixão

Remexendo em meu material escolar do ano passado, encontrei essa crônica:

"Ladrão de livros de 85 anos é proibido de entrar em bibliotecas da Califórnia. Folha Online, 14 nov. 2002"

   Ninguém compreende minha paixão por livros, suspirava ele. E era uma grande paixão: o pequeno apartamento em que vivia estava literalmente atulhado de romances, livos de contos, obras de auto-ajuda, textos médicos, até. Não que ele os lesse. Ler era secundário. O importante era possuir os livros, saber que toda aquela riqueza cultural do passado estava ali, ao alcance de sua mão. A mão que acariciava as lombadas, que folheava amorosamente as páginas.
  O problema é que livros custam dinheiro. E dinheiro lhe faltava. Aos 85 anos, vivendo de uma modesta aposentadoria, o ancião não podia despender muito em livrarias. Por isso roubava. "Roubo", aliás, era uma expressão que lhe desagradava; preferia falar em algo como "redistribuição de riqueza intelectual". Mas o eufemismo não o ajudava muito. Nem as mãos trêmulas, nem a lentidão.
   Cada vez que ia roubar um livro, deixava cair uma pilha inteira no chão. Mais do que isso, não sabia disfarçar: os bibliotecários sabiam quando ele estava roubando. Pediam-lhe as obras furtadas de volta e, justiça seja feita, ele nunca se negou a fazê-lo. Era parte de um jogo, um jogo que ele adorava, e cujas regras sempre respeitou.
   Infelizmente, porém, os bibliotecários cansaram deste jogo. E um acordo entre eles resultou em uma decisão: o homem agora está proibido de entrar nas bibliotecas. Não adianta ele dizer que quer apenas consultar jornais. Não adianta, também, dispor-se a ser revistado. A paciência dos responsáveis simplesmente terminou.
   Resta-lhe refugiar-se em seu sonho. E que sonho é este? Ele sonha que um dia vai ganhar muito dinheiro – num cassino, ou numa loteria. E aí comprará uma grande e antiga biblioteca - que será só dele. Ninguém mais poderá frequentá-la. Só ele. Ali irá todos os dias.
   Para roubar livros, claro. E os bibliotecários, seus empregados, não poderão dizer nada. Mais: terão de fingir que não percebem o furto. E ele roubará o que quiser.
   Belo sonho, consolador sonho. O único inimigo deste sonho é o tempo. Com 85 anos, quanto mais ele poderá esperar pelo cassino ou pela loteria? O tempo é um grande e implacável ladrão. E não tem nenhuma paixão por livros.

SCLIAR, Moacyr. In Folha de S. Paulo, 25 nov. 2002

Beijos, Bruna.


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